segunda-feira, 15 de maio de 2023

Descoberta Igreja clandestina dos primeiros cristãos na Espanha



Arqueólogos descobriram uma cisterna subterrânea convertida em local de culto oculto em uma casa romana em Mérida


Embora o local esteja em ambiente protegido, ainda se aguarda um plano ambicioso que permita a sua visitação. O buraco no chão não revela nada além de escuridão.

Félix Palma, diretor do Consórcio da Cidade Monumental de Mérida (CCMM), deixa cair uma pedrinha e ouve-se ao fundo o som da água. A cavidade está inundada, como na sua origem, quando foi construída como cisterna para uma 'domus' romana, casa de uma família com um certo nível econômico na época. Mas este espaço é o mais antigo documentado na Espanha como local de culto cristão.

O dono da casa reformou este espaço para transformá-lo em um quarto escondido onde um grupo de seguidores de Jesus Cristo se reunia clandestinamente, a salvo de olhares estranhos.

Naquela época, as perseguições contra os cristãos eram intercaladas com períodos de relativa tolerância que podiam ser quebrados a qualquer momento. No século III, são citadas até cinco perseguições até a grande perseguição de Diocleciano, já em 303.

Francisco Javier Heras, diretor do Museu Arqueológico Provincial de Badajoz, recorda com clareza a descoberta deste espaço religioso com mais de 1.700 anos. A 'domus' tinha sido descoberta no final dos anos 80, antes da construção de um dos edifícios que ladeiam o acesso à praça denominada 'Puerta de la Villa', no 'decumanus maximus' de Augusta Emérita, principal artéria que hoje é a rua Santa Eulália, o eixo comercial de Mérida.



Nessa altura optou-se por manter os vestígios "in situ", deixando a cave livre, e anos mais tarde o seu acesso foi encerrado devido à degradação do ambiente. Em 2008, através de um projeto Mecenas, financiado por particulares, decidiu-se recuperar o espaço para conferências e exposições e antes de viabilizar a chamada Sala Decumanus, o Consórcio voltou a documentar o que foi escavado. Nessa releitura e limpeza, os arqueólogos encontraram o buraco, no fundo do porão. Embora sua existência fosse conhecida, ninguém havia descido pelo buraco para ver o que havia dentro.

Rezando na escavação

Heras conta que eles desceram com um poderoso holofote para explorar a cavidade. Estava cheio de terra e apenas um metro de sua parte superior podia ser visto. Focalizando a parede nascente da cisterna, descobriram os vestígios de um carmesim que presidia o espaço. «Quando me virei vi o caricaturista das escavações que rezava um rosário e fiquei com os cabelos em pé. Então eu entendi o valor que tinha para muitas pessoas. Como arqueóloga me interesso pela História, pelo patrimônio, mas esse lugar também toca a parte transcendental das pessoas. O meu companheiro disse-me: 'Para mim é importante estar a rezar onde rezavam há quase 2.000 anos'«.




Do "chrismon", um anagrama de Jesus Cristo formado pelas letras P e X, as duas iniciais de seu nome em grego (Χριστός («Khrīstós») sobrepostas, faltam as seções inferiores e também o alfa (A) e o ômega ( W) que o escoltaram, assim como parte da copa vegetal que o rodeava, mas não houve dúvidas quanto à sua identificação.

Era o único letreiro e fora pintado num local central da cisterna subterrânea transformada em quarto. As escavações revelaram que a "abertura zenital" de onde a água era retirada havia sido fechada, o local coberto com um fino estuque de cal e feito o monograma cristão.

Na reforma, havia sido construída uma entrada por uma estreita galeria escalonada com um cotovelo central de 90º, ao qual se acedia por um segundo pátio, provavelmente por um alçapão desde o solo. Parte da abóbada de meio berço de sua última seção, que estava escondida no subsolo, ainda está preservada. Apenas uma pequena abertura permitia pouca ventilação e iluminação do local.




No revestimento original daquele espaço subterrâneo, foram descobertas gravuras com significados cristãos como pães, peixes e âncoras. E nos escombros que no século V serviram para encher esta 'igreja doméstica', foram recuperados restos de objectos que poderiam ter sido usados para liturgias, como um fragmento de uma '' de fino mármore branco ou parte de um disco de mármore não polido que poderia ter sido um prato ritual malfadado.

Igrejas domésticas

Eles estimam que na sala quadrada, de 4,5 metros de cada lado, cerca de 15 ou 20 pessoas poderiam se reunir durante as cerimônias que seriam presididas pelo 'dominó' ou senhor da casa, que assumiria as funções do padre. Até a construção das primeiras basílicas, as comunidades cristãs se reuniam em 'igrejas domésticas' como a da 'domus' da Puerta de la Villa. "Certamente haveria mais casas como esta. A origem da igreja de Santa Eulália poderia ser outra casa. Até a própria casa da basílica, que fica ao lado do teatro romano, poderia ter sido um local de culto cristão em algum momento", aponta Heras.

O diretor do Museu Arqueológico de Badajoz, que publicou recentemente um estudo detalhado sobre 'A domus da Puerta de la Villa e a primitiva comunidade cristã de Mérida' (Cuadernos Emeritenses), destaca que a igreja da capital A Estremadura "deveria ser muito ativa, muito dinâmica e influente". O poder concentrado em Augusta Emérita, como residência do 'vicarius hispaniarum', chefe da política e administração na Espanha, teve seu paralelo no Bispo de Mérida, que exerceu sua influência sobre outros bispos e foi consultado em casos de heresia.




A 'Carta 67' de Cipriano de Cartago fornece informações valiosas sobre esta comunidade cristã do século III. O documento, o mais antigo referente à Igreja da Espanha datado de cerca do ano 254, refere-se às disputas sobre a nomeação de novos bispos nas dioceses de León-Astorga e Mérida. Os cargos anteriores, Basilides e Marcial, haviam apostatado durante a perseguição de Décio e, passado o perigo, buscavam recuperar o cargo, que já havia sido ocupado por novos bispos.

"Sabemos pelas fontes que há lutas entre facções de cristãos dentro da cidade, que lutam para saber quem é o verdadeiro bispo", diz o arqueólogo estremenho, que em seu livro tenta entender o contexto daquela casa de Os cristãos da Puerta de la Villa na história do cristianismo na cidade, com base em achados arqueológicos.

É difícil detalhar um chrismon. Existem várias hipóteses sobre a construção do símbolo, que tradicionalmente remonta ao imperador Constantino, mas Heras acredita que "deveria ser anterior a essa data no início do século IV" quando o edito de Milão que estabeleceu a liberdade religiosa foi promulgada no império e acabou com a perseguição aos cristãos. Na sua opinião, o crismón da câmara oculta, que dataria do III dC, "é o mais antigo de Mérida e do resto da Espanha" por "pura lógica arqueológica".

Da primitiva basílica cristã de Tróia, situada junto à cidade portuguesa de Setúbal, foi publicado o achado de um crismon, que sempre foi considerado o mais antigo, mas "desapareceu", explica o arqueólogo. "Todo o programa iconográfico daquele espaço é preservado exceto o crismón, do qual há apenas um desenho e também não casa bem com o resto da decoração e com os dados que existem", acrescenta.

Uma visita complicada

Nas intervenções de 2008 consolidou-se a pintura do emeritense crismón e a sua localização, na parte mais alta do espaço, salva-o das águas que o inundam. Da atual sala de conferências do Consórcio é possível ver o buraco zenital por onde entraram os arqueólogos e alguns painéis explicam o seu interior com imagens. "O ideal seria poder visitá-lo no futuro porque o local tem a sua magia", admite Félix Palma a poucos metros de distância.

Neste momento "está em ambiente protegido", mas o diretor do Consórcio explica que teriam de ser superados grandes obstáculos. As águas de uma nascente subterrânea, que foram reorientadas por várias obras na zona, inundam permanentemente a sala e uma drenagem pontual não seria suficiente. "Teria de resolver a deficiência hídrica, que é um problema grave porque teríamos de ver onde parar para não comunicar com outro local", diz Palma.

Além disso, a casa romana ocupava um espaço maior do que o atual terreno em cujo porão se encontrava a cisterna reformada e a entrada para a galeria escalonada teria que ser feita por uma garagem particular que dá para uma rua lateral, a de Delgado Valência.

"O problema é a enorme dificuldade que tem. Se fosse fácil já seria visitável, com certeza, mas pelo seu acesso por zona privada e por água, é complicado", diz Palma. No entanto, os arqueólogos estão confiantes de que podem ser resolvidos porque sabem que o local "tem uma vertente histórica, arqueológica e para os crentes, um simbolismo que vai mais longe".


Tradução: Point Rhema



Glossário:

Domusdomus era a residência urbana das famílias abastadas na Roma Antiga, e, portanto, na sua maioria, das patrícias, nome pelo qual é denominada a nobreza romana.

Decumanus maximusQuando havia mais que uma via orientada no mesmo sentido, uma delas, a mais importante, passava a ser designada por Decúmano Máximo (em latimDecumanus Maximus), que habitualmente ligavam a Porta Pretória (nos acampamentos militares a porta mais próxima do potencial inimigo) à Porta Decumana (a porta mais afastada do potencial inimigo).

In Situ:que está em seu lugar natural ou normal (diz-se de estrutura ou órgão).

Chrismon: Anagrama de Jesus Cristo formado pelas letras P e X, as duas iniciais de seu nome em grego (Χριστός («Khrīstós») sobrepostas

Abertura zenitalIluminação zenital é a entrada de luz natural em um ambiente por meio de pequenos ou grandes aberturas na cobertura.

Pátera ritual(em latimpatera; plural: paterae) era um prato longo e raso usado para beber, ou um cálice usado primariamente no contexto de um ritual como uma libação. Estas páteras eram usadas com frequência em Roma

Vicarius hispaniarum: Administração eclesiástica, ordem, ministério










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Pastor Carlos Roberto Silva
Point Rhema

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