domingo, 14 de julho de 2024

AS LINGUAGENS ALTERADAS DA RELIGIÃO NAS ASSEMBLEIAS DE DEUS NO BRASIL

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AS LINGUAGENS ALTERADAS DA RELIGIÃO NAS ASSEMBLEIAS DE DEUS NO BRASIL


por Eder William dos Santos 


RESUMO:

Este artigo apresenta a historiografia das Assembleias de Deus no Brasil (AD's), quando em seus primórdios um de seus temas mais destacados era a pregação com a divisa “Jesus batiza com Espírito Santo”. Na teologia assembleiana esse mote traduzido em forma de mensagem religiosa incentivava os leigos pela busca da experiência mística da glossolalia. Portanto, o objetivo desta análise propõe investigar a glossolalia nas primeiras duas décadas das AD's no país. Assim, mencionaremos a epistemologia assembleiana para a glossolalia, a partir da perspectiva teológica de Antonio Gilberto e Estêvam Ângelo de Souza. Finalmente, faremos uma comparação entre a glossolalia assembleiana e os pressupostos de Michel de Certeau, Rosileny Santos e B. Bittencourt, para a análise das linguagens alteradas da religião.

Palavras-chave: Assembleias de Deus no Brasil. Glossolalia. Pentecostalismo. Batismo no Espírito Santo. Linguagens Alteradas da Religião. 

ABSTRACT:
This article presents the historiography of the Assemblies of God in Brazil (ADs), when in its beginnings one of its most prominent themes was preaching with the motto "Jesus baptizes with the Holy Spirit". In the Assembly's theology, this motto, translated into the form of a religious message, encouraged the laity to seek the mystical experience of glossolalia. Therefore, the objective of this analysis is to investigate glossolalia in the first two decades of AD in the country. Thus, we will mention the Assembly epistemology for glossolalia, from the theological perspective of Antonio Gilberto and Estevam Ângelo de Souza. Finally, we will make a comparison between the glossolalia assembleiana and the assumptions of Michel de Certeau, Rosileny Santos and B. Bittencourt, for the analysis of the altered languages of religion.

Keywords: Assemblies of God in Brazil. Glossolalia. Pentecostalism. Baptism in the Holy Spirit. Altered Languages of Religion.

OS PRIMÓRDIOS DAS ASSEMBLEIAS DE DEUS: A SUA RELEVÂNCIA HISTÓRICA NO CONTEXTO BRASILEIRO (1911-1930)


Na data em que se comemora o Dia da Bandeira do Brasil, 19 de novembro,  os missionários suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, oriundos da igreja Batista dos Estados Unidos da América (EUA), chegaram em Belém, capital do Pará.  A razão da vinda deles para o Brasil no estado do Pará, é defendida pela instituição assembleiana, porque existia nos EUA, um crente batizado no Espírito Santo, por nome de Adolfo Ulldin, que narrou à Vingren e à Berg, através de palavras proféticas, em que os dois amigos eram personagens e, lhes aparecera o seguinte nome: "Pará". Então, no dia seguinte, ambos foram à biblioteca consultar os mapas e descobriram que o nome, Pará, se referia a um dos estados da região Norte do Brasil, por conseguinte, os dois amigos entenderam que Deus os chamavam para a obra missionária e, os direcionavam para aquele lugar. No contraponto, da argumentação da instituição assembleiana, há suspeitas que Vingren e Berg aparecem no cenário brasileiro justamente quando o ciclo da borracha estava em pleno desenvolvimento, seria mera coincidência?

Numa breve síntese sobre os dois fundadores das AD's no Brasil, Vingren, era o líder do movimento pentecostal assembleiano. Ele nasceu em 8 de agosto de 1879, em Ostra Husby, Ostergötland, Suécia.  Em 1903, viaja para os EUA, onde se forma em teologia no Seminário Teológico Batista Sueco de Chicago. Nos idos de 1909, ele inicia o ministério pastoral na igreja da mesma cidade onde se formou. Por vinte e dois anos viveu no Brasil (1910-1932), pastoreou a igreja-mãe em Belém do Pará e, igualmente liderou a igreja do Rio de Janeiro, por nove anos. Gunnar era casado com Frida Vingren, com quem teve seis filhos.  Ele veio a falecer na Suécia, em 29 de junho de 1933.

Daniel Berg nasceu em 19 de abril de 1884, em Vargön, Suécia. Berg era da Igreja Batista e de família pobre, vindo a se batizar aos quinze anos de idade. Ele viajou da Suécia para a Inglaterra e de lá para os EUA, quando tinha dezoito anos de idade. Chegou no Brasil com vinte e seis anos, onde viveu por cinquenta e dois anos. No Brasil, ele trabalhava na Companhia Port of Pará, como caldeireiro e fundidor, ganhando 12 mil réis por dia,  para o sustento do seu amigo Vingren. Enquanto aquele trabalhava, Vingren estudava a língua portuguesa para pregar no idioma de seus ouvintes. Berg não ocupou cargos eclesiásticos de destaque na denominação assembleiana, mas ele se desempenhava uma atividade religiosa por pura paixão singular - a colportagem.  Em julho de 1920, Berg se casa com Sara, na Suécia e, retorna ao Brasil. Quando havia algum problema, ele verbalizava um bordão que se tornou sua marca registrada: "Jesus é bom".  No epílogo de sua vida, ele volta à Suécia, vindo a falecer em Estocolmo, nos idos de 1963.

Na chegada ao Brasil, os amigos suecos, Berg e Vingren, procuraram o pastor metodista Justo Nelson, diretor do jornal da cidade de Belém do Pará. Justo era conhecido de Vingren, nos EUA.  Justo encaminhou-os aos irmãos batistas, sendo eles recebidos pelo missionário sueco Erik Nelson. O pastor Erik era o líder da Primeira Igreja Batista de Belém, ele convidou os dois missionários para cooperarem nas atividades eclesiásticas, enquanto ele exercia serviços itinerantes de evangelização e pastorado em outros estados do Norte e Nordeste. Erik, também, ofereceu-lhes o porão da igreja para moradia, cujo endereço ficava na rua João Balby, 406. Tão logo, o pastor batista se ausentou dos cultos em Belém, Vingren e Berg pregavam e ensinavam nas reuniões sobre a experiência do batismo no Espírito Santo e a cura divina. É de se destacar que as orações realizadas pelos dois missionários eram longas e em voz alta.

No retorno do pastor Erik Nelson à Belém, a sua igreja tinha crescido em número de visitantes. Erik, imediatamente escreve um folheto alertando à igreja sobre as "falsas doutrinas" disseminadas pelos missionários. O pastor batista rejeitava categoricamente o batismo no Espírito Santo, acusando Vingren e Berg de separatistas. Portanto, Erik rompe com os missionários, expulsando-os. O rompimento entre a Igreja Batista e os dois missionários suecos, influenciou dezenove pessoas, todos eram membros da mesma igreja e, os tais acompanharam Vingren e Berg.  O diácono Henrique Albuquerque colocou a sala de sua residência à disposição para a celebração dos cultos e, também ofereceu a sua casa para a moradia dos missionários, no endereço da Rua Siqueira Mendes, 79, . Todavia, Pepeliascov  e Cabral  mencionam que o número da casa era 67. No entanto, há entre os historiadores unanimidade no que tange ao bairro, Cidade Velha. Depois a igreja foi transferida para Av. São Jerônimo, 224 (atual Av. Governador José Malcher) e por fim, para a Travessa 9 de janeiro, 75 (atual nº 639), em 8 de novembro de 1914.

Eram os primórdios dos crentes pentecostais assembleianos que inicialmente colocaram o nome da denominação religiosa de Missão da Fé Apostólica (MFA), em 18 de junho de 1911. Mas nos idos de 11 de janeiro de 1918, o nome da igreja foi mudado para Assembleia de Deus.  É importante destacar que já existiam igrejas com o nome Assembleia de Deus nos EUA desde 1914, na Guatemala em 1916, e no México em 1917.  A razão da mudança do nome "Missão da Fé Apostólica" para "Assembleia de Deus", segundo Alencar  é porque a MFA era a igreja dos negros pentecostais norte-americanos e, as AD's eram as igrejas dos brancos pentecostais, logo, existiam entre as duas denominações pentecostais barreiras étnico-raciais e socioeconômicas. As AD's nos EUA cultivavam a segregação racial.

Nas suas primeiras décadas as AD's cresceram exponencialmente nos estados do Norte no Brasil.  Já nos estados do Nordeste com destaque para Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e outros. Além de Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O recorte historiográfico deste estudo sobre a presente denominação pentecostal no Brasil tem a sua delimitação em quase duas décadas (1911-1930), ou seja, desde a sua fundação (18/06/1911), até a década de 1930, quando os missionários suecos lideravam a igreja assembleiana em solo brasileiro e, transferiram-na para os pastores brasileiros, em 1930.

Outro fator relevante para o recorte da análise foi à realização da primeira Convenção Geral das AD's, em Natal/RN, entre os dias 5 e 10 de setembro de 1930.  Antes da Convenção Geral de 1930, as ADs eram caracterizadas por uma liderança carismática, isto é, a igreja era dirigida por visão/revelação, os seus obreiros eram voluntários, em vista disso, eles não eram assalariados pela igreja assembleiana.  Com a Convenção Geral de 1930, se dá a formalização das AD's como personalidade jurídica. Então, a partir desse "divisor de águas" surgem diversos ministérios das AD's por todo o território nacional. Bem assim, a consolidação de igrejas-sede, mormente nas capitais brasileiras.  Também, ocorre a decisão convencional de retirar de circulação os jornais Boa Semente e O Som Alegre e, decidem pela criação de um novo jornal - Mensageiro da Paz.

Na próxima seção analisaremos como se desenvolveu a visão de mundo das AD's no Brasil, a partir do fenômeno da glossolalia, em sentido específico, nos seus dezenove anos iniciais (1911-1930).

O FENÔMENO DA GLOSSOLALIA NAS ASSEMBLEIAS DE DEUS NO BRASIL


As AD's são caracterizadas como igreja pentecostal, porque acredita na atualidade dos dons do Espírito Santo e na sua contemporaneidade.  Um dos dons carismáticos que mais é exaltado na comunidade assembleiana sem dúvida alguma é a glossolalia, isto é, falar e/ou cantar em línguas, conforme assinalam Estêvam Ângelo de Souza  e Antonio Gilberto:

"Cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem" - (ATOS 2.1-4).

Isto posto, a investigação sobre o fenômeno da glossolalia sobre Vingren e Berg, passa obrigatoriamente pelo avivamento ocorrido em Chicago (EUA). Assim sendo, foi nesse contexto de grande avivamento norte-americano que estes dois missionários suecos foram batizados no Espírito Santo, isto é, falaram em línguas pela primeira vez, em 1909, segundo corrobora Joanyr de Oliveira  e o próprio Gunnar Vingren:

"No verão de 1909, Deus me encheu de uma grande sede de receber o batismo com o Espírito Santo e com fogo. Em novembro do mesmo ano, pedi licença à minha igreja para visitar uma conferência batista que deveria ser realizada na Primeira Igreja Batista Sueca em Chicago. Fui à Conferência com o firme propósito de buscar o batismo com o Espírito Santo. E, louvado seja Deus, depois de cinco dias de espera, o Senhor Jesus me batizou com o Espírito Santo e com fogo. Quando recebi o Espírito Santo, falei em línguas, justamente como está escrito que aconteceu com os discípulos no dia de Pentecostes: At 2. É impossível descrever a alegria que encheu o meu coração. Eternamente o louvarei, pois me batizou com o seu Espírito Santo e com fogo [...] Foi em novembro de 1909, em Chicago, quando eu estava buscando o batismo com o Espírito Santo, que conheci Daniel Berg".  

Após terem recebido o batismo com o Espírito Santo, Vingren e Berg, já em terras brasileiras pregavam com veemência a mensagem pentecostal a partir de quatro temas, a saber: a) Jesus salva; b) Jesus cura; c) Jesus batiza no Espírito Santo; d) Jesus breve voltará.

Sobre a questão do batismo com o Espírito Santo, a instituição religiosa em destaque através de um dos seus órgãos oficiais, a Casa Publicada das Assembleias de Deus (CPAD), diz que a primeira pessoa a ser batizada no Espírito Santo nas ADs no Brasil, foi Celina Albuquerque, em 8 de junho de 1911 e, no dia seguinte a sua Maria de Nazaré também recebeu a capacidade para "falar em línguas desconhecidas".

De Belém do Pará para o Rio de Janeiro, mencionamos um jovem que nasceu no dia 17 de setembro de 1903, em Santana do Livramento/RS e, que aceitara a pertença assembleiana, em 05 de abril de 1924.  Era Paulo Leivas Macalão, ele se tornou o primeiro secretário da AD no Rio de Janeiro, o segundo crente assembleiano a constar no rol de membros da igreja fluminense, o pastor fundador-presidente da AD Ministério de Madureira e o responsável pela autoria e tradução de diversas músicas e letras do hinário oficial das AD's - Harpa Cristã.  Paulo Macalão foi batizado nas águas por Vingren, na praia do Caju e a sua experiência sobre o batismo no Espírito Santo aconteceu em 3 de novembro de 1924, segundo Jeferson Magno Costa:

"Não demorou muito e o Espírito Santo veio sobre ele (Paulo Leivas Macalão) e o batizou com fogo, revestindo-o de poder, e dando-lhe sabedoria e autoridade para testemunhar de Jesus em qualquer lugar para onde o Mestre o mandasse."
 
Mas, a despeito dos exemplos citados sobre a glossolalia no contexto das AD's no Brasil, indagamos: Por que o batismo no Espírito Santo foi o mote da propaganda assembleiana, desde os primórdios de sua existência? Como se construiu a cosmovisão assembleiana no que tange ao "falar em línguas"? Como o pastor transmite essa visão de mundo aos leigos?

Antonio Gilberto talvez nos ajude a buscar as respostas para as perguntas elencadas. Gilberto falecido em 2018, era quase uma unanimidade nas AD's do país. Gilberto, foi pastor, professor, consultor doutrinário e teológico da CPAD, formado em psicologia, pedagogia, letras e, com mestrado em teologia. Ele foi também autor de vários livros de cunho pentecostal e comentarista da revista Lições Bíblicas para as aulas de Escola Dominical. Gilberto, fez apologia sobre a glossolalia afirmando que Martinho Lutero (1483-1546) falava em línguas, citando o depoimento de Jack Deer, professor do Seminário Teológico de Dallas e, as obras: História da Igreja Alemã, de Souer (Vol. 3, p. 406) e, Pentecostes para Todos de Emílio Conde, fazendo menção da página 88 do referido livro, para corroborar seu argumento sobre a experiência de Lutero com a glossolalia. O falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito Santo é definido por Gilberto assim:

"É um revestimento e derramamento de poder do Alto, com a evidência física inicial de línguas estranhas, conforme o Espírito Santo concede, pela instrumentalidade do Senhor Jesus, para o ingresso do crente numa vida de mais profunda adoração e eficiente serviço para Deus" (LUCAS 24.49; ATOS 1.8; 10.46; 1 CORÍNTIOS 14.15,26 - grifo nosso). 

Além de Antonio Gilberto, outro teólogo assembleiano que difundiu através da teologia a cosmovisão da AD sobre a glossolalia foi Estêvam Ângelo de Souza (1922-1996). Souza foi pastor da AD maranhense por quase quatro décadas, comentarista da revista Lições Bíblicas para as aulas de Escola Dominical, da CPAD, autor de vários artigos e livros sobre o "falar em línguas estranhas". Ele define o batismo com o Espírito Santo dizendo: 

"É nossa convicção que o recebimento do Espírito, através do batismo de poder, é provado pelo fato de que o crente batizado com o Espírito Santo fala em línguas desconhecidas, pelo poder sobrenatural de Deus."

Outro periódico oficial das AD's é a Seara, a Revista Evangélica, nela há um artigo de Marcelo Barros , com o título - Essas Crianças Não São Brincadeiras -, no texto Barros explicita vários exemplos de crianças assembleianas no exercício da práxis mística pentecostal: falando em línguas, pregando e cantando com eloquência, exorcizando demônios, entre outras experiências pentecostais.

Outrossim, a pregadora norte-americana Kathryn Kuhlman (1907-1976), foi e continua sendo referência para muitas mulheres assembleianas que desejam "falar em línguas" e trabalhar na igreja local ou como itinerantes, com o anelo de serem reconhecidas por suas atividades eclesiásticas. Kuhlman  afirmava que o falar em línguas desconhecidas é o batismo no Espírito Santo que é dado ao crente, para o propósito de trabalhar na obra de Deus com "poder". Este "poder" é comumente chamado pelos assembleianos de "poder pentecostal."

AS LINGUAGENS ALTERADAS DA RELIGIÃO SEGUNDO CERTEAU, ROSILENY E BITTENCOURT


Outro teórico que contribuiu para o estudo é B. P. Bittencourt, a partir da análise separando o caso do dia de Pentecostes relatado em Atos dos Apóstolos e as línguas estranhas faladas e o louvor em êxtase da comunidade cristã mencionada pelo apóstolo Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulos 12 e 14. Bittencourt assevera que o ocorrido no Pentecostes foi realmente um milagre divino, pois os galileus simples falavam línguas e dialetos das nações presentes em Jerusalém. Ele afirma que a experiência vivenciada em Atos 2 é comparada hoje, por exemplo, como um simples brasileiro operário de fábrica, que ao pregar o evangelho às pessoas estrangeiras, esse operário falasse em inglês, francês, japonês sem nunca ter aprendido tais idiomas.  Antonio Gilberto concorda com Bittencourt sobre o episódio de Pentecostes ter sido um milagre divino, afirmando que o batismo no Espírito Santo ocorreu pela primeira vez, quando os discípulos falaram os diversos dialetos e línguas em Atos 2.

Em contrapartida, Bittencourt tomando como base 1 Coríntios 12 e 14, assevera que “as línguas estranhas são sons articulados que ninguém entende na congregação e que não possuem estrutura gramatical, são resultados do êxtase espiritual que não conhece regras nem limites”.  Por isso, ele diz que as variedades de línguas citadas em 1 Coríntios 12.10 significam outras espécies de línguas, isto é, grego, hebraico, aramaico etc. O mesmo autor também afirma que as línguas estranhas mencionadas em 1 Coríntios 14, não é um dom do Espírito Santo.

Outro referencial teórico para o entendimento da problemática é a análise feita por Rosileny Alves dos Santos. A autora trabalha com o objeto - razão e êxtase: experiência religiosa e estados alterados de consciência. Ela diz que a glossolalia vem acompanhada do êxtase religioso, por conseguinte, a mesma é chamada de êxtase intermitente porque o fiel experimenta “uma mistura de momentos de reflexão e momentos de êxtase, quando os momentos de êxtase são experimentados ao mesmo tempo”.  Rosileny assevera que o êxtase aparece nos cultos pentecostais a partir dos seguintes elementos concretos: músicas, orações, sermões, contemplações, liderança e conteúdo teológico.

O testemunho historiográfico das AD's corrobora a hipótese de Rosileny, uma vez que as línguas estranhas surgem nos cultos assembleianos, conforme se processam os elementos elencados pela pesquisadora, como por exemplo, os cânticos espirituais.  Se o pressuposto do êxtase religioso é a chave para a compreensão da glossolalia, então, vejamos como a autora define o estado alterado de consciência e êxtase emocional verdadeiro:

"Como se pode afirmar que determinado êxtase religioso seja falso? Quando se percebe evidenciar a vontade humana. Quando não se podem expressar os desejos e evidenciar a vontade dos indivíduos e mesmo assim aparecem momentos extáticos, podemos chamar tais espaços de êxtase verdadeiros". 

Além de Bittencourt e Rosileny, o historiador francês Michel de Certeau (1925-1986) foi um dos teóricos mais precisos para o entendimento das linguagens alteradas da religião. No seu livro A escrita da história, ele explicita que as linguagens alteradas da religião aparecem geralmente em casos de micro-grupos.  Do mesmo modo, no caso assembleiano, a glossolalia aparece misticamente com um "punhadinho de crentes", conforme expressão cunhada por Joanyr de Oliveira.  Certeau analisou o caso clássico sobre La Possession de Loudun (1610-1630), por isso, o caso da possessão explicitado pelo historiador serve de referência para a compreensão da glossolalia. Segundo a compreensão assembleianos a glossolalia só ocorre porque o Espírito Santo "possui" o crente.
  
Segundo Certeau as possessões também ocorrem onde existe homogeneidade social. Quando Gedeon Freire de Alencar chama de "a síndrome marginal"  referindo-se aos assembleianos, então, ele concorda sobre o pressuposto dos meios homogêneos, pois a glossolalia aconteceu nos primórdios das AD's justamente quando a sua membresia era formada por pessoas socialmente pobres, confirmando o que Vingren disse sobre a classe social dos brasileiros: "o povo [...] era de um nível social muito simples."

As linguagens alteradas da religião ocorrem na possessão, porque segundo Certeau  a possessão é uma teatralização manifesta quando, por exemplo, as mulheres possuídas podem "representar uma relação entre o masculino do discurso e o feminino da sua alteração". Da mesma forma, ocorre rotineiramente na glossolalia pentecostal-assembleiana uma cena, no lugar que se apresenta uma mulher-crente que fala em línguas e, concomitantemente ela profetiza em nome de "Deus Pai", Gilberto chama essa prática mística de "dons de manifestação do Espírito".  Portanto, tanto na possessão de Loudun como na glossolalia há uma reclassificação das representações sociais, logo, elas são fenômenos sociais.
 
Bem assim, Certeau  trabalha com o pressuposto de "um discurso do outro?" Ou seja, na possessão o discurso das possuídas era falado por um outro, e, no caso da glossolalia alguma outra coisa fala no crente, quando este recebe o batismo no Espírito Santo, então, essa experiencia religiosa é chamada por Souza de "variedade de línguas".  Se no caso das possuídas citado por Certeau, não se sabe quem fala ou do que fala, porém, no caso da glossolalia, Souza assevera que quando se sabe quem fala e do que fala, é porque o fenômeno das línguas ocorreu concomitantemente com a interpretação da mesma.

Certeau, define transgredir como sendo atravessar, ou seja, a alteração acontece no discurso religioso porque existe "a figura móvel, evanescente e ressurgente, da transgressão do discurso".  A travessia da alteridade das linguagens da religião, igualmente, ocorre no caso da glossolalia assembleiana provocando um dito dentro do sistema doutrinário das AD's, visto que o discurso teológico assembleiano é totalmente construído com base nas experiências pentecostais, especialmente o falar em línguas.  Certeau assevera que estar possuído é uma situação relacionada especificamente com a oralidade.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, a glossolalia assembleiana é realmente um fenômeno exclusivo da oralidade, haja vista, que não se sabe se há na historiografia das ADs no Brasil, casos sobre algum crente que fale em línguas estranhas e, que tenha escrito no mesmo tempo em que falava em línguas. É relevante um outro pressuposto levantado por Certeau que diz “Eu é um outro” , ou seja, o autor entende que a brecha aberta pela pessoa possuída é a local onde se processa a linguagem alterada. Por isso, há um discurso nas ADs proferido pelo líder para que os leigos orem com o “coração aberto” (brecha aberta com bem disse Certeau), no objetivo de receberem o "poder pentecostal" de falar em outras línguas.

Assim, o fenômeno místico da glossolalia no contexto pentecostal, sobretudo nas AD's é realmente uma prova sobre a existência das linguagens alteradas da religião. E, obtemos a ajuda de Certeau e de outros referencias teóricos para o entendimento do caso da glossolalia assembleiana, que se não compreendemos plenamente o mesmo, pelo menos não devemos emitir juízo de valor precipitado e, principalmente aprendemos a respeitar o outro, o diferente, o inefável.



NOTAS
1.
Eder William dos Santos, Doutor e Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e Educação pela FABAD, em Pindamonhangaba/SP. Professor do Programa de Graduação em Administração (Gestão) pela UNIFACEAR, em Fazenda Rio Grande/PR. Membro do Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo (GEPP) pela PUC-SP. Email: prederwilliam@gmail.com.

2. CABRAL, David, Assembleias de Deus. Rio de Janeiro: Betel, 1998, p. 59.
3. VINGREN, Ivar. Gunnar Vingren: o diário do pioneiro. Rio de Janeiro: CPAD, 1982, p. 10.
4. OLIVEIRA, Joanyr. As Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 1997, p. 34.
5. ALENCAR, Gedeon Freire de. Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, todo louvor a Deus: Assembleia de Deus - origem, implantação e militância nas quatro primeiras décadas - 1911-1946. São Bernardo do Campo: Umesp, 2000, p. 67-69.
6. VINGREN, 1982, p. 17.
7. Ibid., p. 234.
8. ALENCAR, 2000, p. 51-53.
9. PEPELIASCOV, Antonio. História da Assembleia de Deus Santo André. Santo André: AP, 1997, p. 51.
10. OLIVEIRA, 1997, p. 51.
11. PEPELIASCOV, 1997, p. 50.
12. OLIVEIRA, 1997, p. 36-41.
13. Ibid., p. 50.
14. Ibid., p. 51.
15. PEPELIASCOV, 1997, p. 56.
16. CABRAL, 1998, p. 63.
17. Ibid., p. 64.
18. ALENCAR, 2000, p. 59.
19. Ibid., p. 60-61.
20. SYNAN, Vinson. O século do Espírito Santo: 100 anos do avivamento pentecostal e carismático. São Paulo: Vida, 2009, p. 145-146.
21. VINGREN, Ivar. Despertamento apostólico no Brasil: resumo da missão pentecostal sueca no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 1987, p. 15.
22. OLIVEIRA, 1997, p. 128.
23. ALENCAR, 2000, p. 100.
24. GILBERTO, Antônio. Verdades Pentecostais: como obter e manter um genuíno avivamento pentecostal nos dias de hoje. 1. ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 12.
25. SOUZA, Estêvam Ângelo de. Nos domínios do Espírito. Rio de Janeiro: CPAD, 1987, p. 89.
26. GILBERTO, 2006, p. 43-46.
27. BÍBLIA. Almeida, João Ferreira de. Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego. Versão Revista e Corrigida. Rio de Janeiro: CPAD, 2011.
28. OLIVEIRA, 1997, p. 33, 34.
29. VINGREN, 1982, p. 23, 24, 26.
30. OLIVEIRA, 1997, p. 54.
31. COSTA, Jeferson Magno. Paulo Macalão: a chamada que Deus confirmou. Rio de Janeiro: CPAD, 1983, p. 26.
32. ALENCAR, 2000, p. 120-122.
33. COSTA, 1983, p. 31.
34. GILBERTO, 2006, p. 57.
35. SOUZA, 1987, p. 89.
36.  BARROS, Marcelo. Essas crianças não são brincadeiras. A Seara: revista evangélica. Rio de Janeiro, CPAD, ano 41, nº 12, p. 22-26, nov., 1997.
37. KUHLMAN, Kathryn; BUCKINGHAM, Jamie. O melhor de Kathryn Kuhlman: o que pensava, o que cria, o que dizia. São Paulo: The Way Books, 2006, p. 41.
38. BITTENCOURT, B. P. Ensaios Teológicos: papéis e notas. Piracicaba: Editora Unimep, 2001, p. 137.
39. GILBERTO, 2006, p. 58-60.
40. BITTENCOURT, 2001, p. 138.
41. Ibid., p. 139.
42. SANTOS, Rosileny Alves dos. Entre a razão e o êxtase: experiência religiosa e estados alterados de consciência. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 182.
43. SANTOS, 2004, p. 184-192.
44. VINGREN, 1987, p. 117.
45. SANTOS, 2004, p. 161.
46. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 243.
47. OLIVEIRA, 1997, p. 51.
48. GILBERTO, 2006, p. 63.
49. ALENCAR, 2000, p. 129, 130.
50. CERTEAU, 1982, p. 25.
51. Ibid., p. 244.
52. GILBERTO, 2006, p. 70-73.
53. CERTEAU, 1982, p. 245.
54. SOUZA, 1987, p. 215-227.
55. Ibid., p. 227-233.
56. CERTEAU, 1982, p. 247, 248.
57. GILBERTO, 2006, p. 12.
58. CERTEAU, 1982, p. 252.
59. Ibid., p. 253.
60. VINGREN, 1982, p. 194, 195.

REFERÊNCIAS 
ALENCAR, Gedeon Freire de. Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, todo louvor a Deus: Assembleia de Deus - origem, implantação e militância nas quatro primeiras décadas - 1911-1946. Dissertação de Mestrado pela Umesp, São Bernardo do Campo, 2000. 
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Pastor Carlos Roberto Silva
Point Rhema

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